Durante séculos, as pequenas povoações piscatórias do litoral português abrigaram-se em rudimentares construções de madeira, erguidas por estacaria.
O mar dava-lhes o sustento, e a necessidade de não se distanciarem dele, obrigava-as a essas construções, adaptadas às condições de instabilidade do terreno. Espreitada pelo rio e admirada pelo mar, a Cova lembrava uma Aldeia Lacustre. Terra de rara beleza mas de pouco pão, onde predominavam os extensos campos dunares que se estendiam desde a embocadura do rio, seguindo para sul pelo litoral. As suas gentes, acostumadas a pouca fartura, de corpos esguios e rostos tisnados, talhados pelas maresias e salgadiços, tinham por berço as dunas, imponentes, majestosamente estendidas a Sul do Mondego, defronte da grande Praia da Figueira.
Num desses palheiros à beira-mar, no ano de 1911, nascia Álvaro Fernandes Reboca. A pesca sempre foi a atividade da família e porque a Arte Xávega não lhes matava a fome o ano inteiro, valiam-se de outras artes, entre elas a Pesca do Bacalhau, pelos mares longínquos dos Grandes Bancos da Terra Nova.
Álvaro não soube fugir à sua sina. Pela mão do pai, António Fernandes Reboca, o petiz de apenas treze anos embarcou pela primeira vez, exercendo as funções de moço. A bordo dos Lugres “Júlia I”, “Pescador”, “Leopoldina”, “Júlia IV”, “Terra Nova” e do navio “Bissaya Barreto”, havia de passar metade da vida, passando por quase todos os postos que um marinheiro/pescador pode alcançar.
O pior tempo foi o da Pesca à Linha, mas se a vida era dura, a fome era pior.
Por isso, todos os dias que o mar permitia, os Dóris arriavam e dentro de cada um ia um homem afoito, disposto a arrancar-lhe das águas o sustento, para si e para os que em terra esperavam pelo pouco que ele ganharia.
“Levantai-vos rapaziada, filhos da Virgem Maria. Vai um homem para o leme e dois para a vigia” era o último verso dos Louvados, que os pescadores repetiam antes de começar mais um dia de trabalho. O ditado é velho: ‘”se queres aprender a orar, entra no mar”. E era à fé que eles se agarravam. Com a morte ali tão perto, era preciso agarrar-se à esperança de que voltariam.
A bordo do Dóri, cada homem tinha duas linhas, com um só anzol, e pescava de pé, com “Zagaias”, “Pingalins” e outras formas de “zagaiar”, normalmente com uma linha em cada mão, com os braços a puxarem e largarem as linhas, encostadas a dois pinos - pontas de cornos de vaca ou boi - colocados na borda do Dóri e seguros por uma pequena linha de Gagim.
Para isco usava-se o Clam , importado dos Estados Unidos, tripas de Cagarras, Lulas, Capelins ou outros peixes encontrados no estômago das primeiras capturas.
O isco preferido era a Lula, por isso tinham sempre a bordo uma linha para a pesca desse molusco, guarnecida de dia e de noite, chegando mesmo a acordar toda a gente aquando da passagem de um cardume. A sua importância era tal, que o primeiro a pescar uma Lula recebia o mesmo prémio que o primeiro a chegar a bordo com um Dóri cheio: uma garrafa de aguardente, fiel companheira nas horas de solidão, religiosamente guardada dentro do “Foquim”, junto com a merenda e o tabaco.
De início não havia outro tipo de pesca. Só mais tarde apareceu o “Troley”. Linhas de Gagim, com “Entralhos” para fixar os anzóis, que levavam no início um “Grampolim”, ferro de fixar a linha ao fundo e no final um balão, feito pelo próprio pescador, em lona e impregnado de Óleo de Linhaça fervido, no qual misturavam um pouco de tinta para dar a cor que cada um mais gostava.
E assim se passavam horas infindas e tantas vezes medonhas, até que o Dóri enchesse de peixe, enquanto que ao longe o Lugre “caturrava”, fazendo horas do pessoal regressar a bordo.
Após regressar ao navio com a captura, o peixe era atirado para dentro de umas caixas, as “Quetes” , com a ajuda de forquilhas, a que chamavam garfos. Dali passava para o "Troteiro", que o degolava e abria, com uma faca de dois gumes, o “Trote”. Passava depois para o “Quebra-cabeças”, que lhe retirava as vísceras e, com uma pancada na espinha, lhe separava a cabeça, empurrando-o para o Escalador. Em cada mesa havia um buraco para o qual se atirava o fígado - “Levas” na gíria dos pescadores - que depois de reunidos eram colocados em barricas, ficando a decompor-se, separando assim o óleo dos restantes líquidos, que sendo menos densos ficavam por baixo, abrindo uma torneira que existia no fundo das barricas. Cabia ao Escalador dar a forma ao bacalhau, usando uma faca de um só gume, atirando-o de seguida para dentro da “Selha” de lavagem. Esse trabalho decorria durante todo o dia, sob os rigores do clima, e do mar, que amiúde tudo inundava com uma vaga. Com o cair da noite e a recolha dos últimos Dóris, sob a luz das lanternas de petróleo, baldeava-se o convés, lançando ao mar os restos, a que os pescadores chamavam “Gueira”, que no entanto, ia deixando o cheiro entranhado no navio, que todos notavam, menos os pescadores.
Mas sob a coberta o trabalho continuava, depois de lavado, o bacalhau entrava para o porão para ser salgado, e talvez fosse esse o trabalho mais duro a bordo, com a escotilha quase sempre meia fechada, para proteger o bacalhau da chuva e dos golpes de mar, com pouca luz e o mau cheiro intenso, de gatas sobre o bacalhau que iam empilhando, os salgadores deitavam uma mão cheia de sal atrás da outra, sobre o peixe, que passava então a ser "Bacalhau Verde". A memória da dureza deste trabalho ficou marcada na expressão popular que algumas mães usavam quando queriam ameaçar os filhos: “se continuas assim, mando-te embarcar como salgador”.
O frio, o sal, as linhas, em suma toda a dureza do trabalho refletia-se sobretudo nas mãos. Inchavam, endureciam, enchiam-se de frieiras, que com o tempo rebentavam, transformando-se em chagas.
Nos Dóris o trabalho não permitia o uso de luvas, pelo que os pescadores usavam umas tiras de couro para proteger as palmas a que chamavam “Nepas”. Todas as tarefas eram feitas entre as 5 horas da manhã e a meia-noite, sem feriados ou fins-de-semana, e mesmo o tempo de vigia era tirado ao tempo de descanso.
Quando acabava o dia de trabalho, por volta da meia-noite, o Capitão estava no porão do navio a ver a salga, que era a parte que exigia mais assistência, para o peixe não se estragar. Quando chegava cá acima perguntava que horas eram, já que não era hábito usar relógio de pulso. Lá lhe diziam: “um quarto para a meia-noite!”. Ele fazia logo as contas e respondia: “Louvados às cinco horas da manhã!” E “Louvados” era o mesmo que levantados… o pessoal depois comia alguma coisa e deitava-se a dormir, completamente vestido. Não mudavam de roupa com muita frequência.
Os vigias, que rodavam de acordo com uma escala diária de serviço alertavam a tripulação no caso de se levantar uma tempestade de repente ou de vir um Iceberg em direção ao Lugre.
Mas o mar que lhes dava o pão, podia dar-lhes também a perdição. Não foram poucos os que por lá ficaram, engolidos pelas ondas, vivos ou mortos.
Quantos nele não encontraram sepultura? Ou porque desapareciam nas vagas, ou porque, mesmo morrendo a bordo, eram atirados borda fora. Era o Capitão que decidia se os levava a terra, ou se os sepultava no mar. E muitas vezes, era ali mesmo que os deixava…
Um dia, um dos companheiros de Álvaro Fernandes Reboca faleceu a bordo, com “uma doença nos pulmões”. O próprio contou a história, entrevistado por Marques Cabete, do programa “Culturando”, na Rádio Maiorca, em Setembro de 1994.
- O Capitão mandou embrulhar o corpo em vários lençóis, amarrados com pedaços de correntes. Até chumbo se atou à sua volta para fazer peso.
Junto á Amura de Estibordo, rezaram-se três Ave Marias e um Pai Nosso, encomendando-lhe a alma a Deus. A tripulação, angustiada, assistia assim ao desaparecimento de um companheiro, sem a família o poder ver. Corpo botado no Dóri, “Teques” presos nas “Alças” e vá de arriar.
- Comigo foi mais um camarada. Remámos para nos afastarmos do
Lugre. Às tantas, diz-me o outro: "é pá, ele já não vem mais cá acima. Vamos chapá-lo ao mar”. E assim se fez…. de seguida remámos para bordo e a faina continuou.
Outros funerais foram feitos a bordo, com o mesmo envolvimento de roupa, correntes e tudo que fizesse peso, mas deitados na “Amura” - borda do Lugre - e de seguida atirados ao mar.
E o pior de tudo é que em terra não se sabia de nada, enquanto não terminasse a viagem. Não haviam comunicações por rádio. As mensagens eram dadas por código, com bandeiras içadas no mastro da Vela Mezena.
Pelas dunas do areal da Cova até ao Cabedelo, corriam famílias inteiras, ao encontro do Lugre do seu homem, do filho, do pai ou avô, tio ou sobrinho e tantos amigos da terra. O alvoroço era geral, numa mistura de alegria, medo e angustia.
A ansiedade de mostrar o filho ao pai, feito na época do defeso e que entretanto tinha nascido.
Era também a esperança de ir à casa de penhores “tirar o fio de ouro do prego”, ou a gabardina, empenhados a meio do Inverno, para acudir às necessidades mais urgentes da família.
Acostumados a reconhecerem os códigos, de pronto se sabia se vinham de saúde, se traziam doentes, se havia gente presa por desobediência, ou desaparecidos.
Foi assim por muitos e dolorosos anos.
Nessa viagem, como em tantas outras, viu-se ao longe que a bandeira falava de morte, mesmo sem se saber ainda quem morrera. Por isso, o pranto era geral, entre os que em terra esperavam ansiosos: “houve morte a bordo. Ai que desgraça!
Manuel Alberto Afonso recorda a entrevista na Rádio Maiorca: “ o Ti Álvaro Reboca – que Deus o tenha - ficou rígido de rosto, voz embargada pela recordação, pela emoção. Um retrato vivo e infindável de amargura… sentimos um calafrio por ouvir, assim, daquele modo simples, uma das componentes de tragédia mais abruptas e violentas da Faina Maior. Infelizmente temos casos destes na minha terra. Famílias que cresceram com a desgraça, mas que nunca deixaram o mar”.
Francisco VieiraFontes: Manuel Alberto Afonso, “Álbum Figueirense”, “Ílhavo - Terra de Marinheiros”, “Caxinas – de Lugar a Freguesia”, “Aqui e Agora”, “Wikipédia”.
O mar dava-lhes o sustento, e a necessidade de não se distanciarem dele, obrigava-as a essas construções, adaptadas às condições de instabilidade do terreno. Espreitada pelo rio e admirada pelo mar, a Cova lembrava uma Aldeia Lacustre. Terra de rara beleza mas de pouco pão, onde predominavam os extensos campos dunares que se estendiam desde a embocadura do rio, seguindo para sul pelo litoral. As suas gentes, acostumadas a pouca fartura, de corpos esguios e rostos tisnados, talhados pelas maresias e salgadiços, tinham por berço as dunas, imponentes, majestosamente estendidas a Sul do Mondego, defronte da grande Praia da Figueira.
Num desses palheiros à beira-mar, no ano de 1911, nascia Álvaro Fernandes Reboca. A pesca sempre foi a atividade da família e porque a Arte Xávega não lhes matava a fome o ano inteiro, valiam-se de outras artes, entre elas a Pesca do Bacalhau, pelos mares longínquos dos Grandes Bancos da Terra Nova.
Álvaro não soube fugir à sua sina. Pela mão do pai, António Fernandes Reboca, o petiz de apenas treze anos embarcou pela primeira vez, exercendo as funções de moço. A bordo dos Lugres “Júlia I”, “Pescador”, “Leopoldina”, “Júlia IV”, “Terra Nova” e do navio “Bissaya Barreto”, havia de passar metade da vida, passando por quase todos os postos que um marinheiro/pescador pode alcançar.
O pior tempo foi o da Pesca à Linha, mas se a vida era dura, a fome era pior.
Por isso, todos os dias que o mar permitia, os Dóris arriavam e dentro de cada um ia um homem afoito, disposto a arrancar-lhe das águas o sustento, para si e para os que em terra esperavam pelo pouco que ele ganharia.
“Levantai-vos rapaziada, filhos da Virgem Maria. Vai um homem para o leme e dois para a vigia” era o último verso dos Louvados, que os pescadores repetiam antes de começar mais um dia de trabalho. O ditado é velho: ‘”se queres aprender a orar, entra no mar”. E era à fé que eles se agarravam. Com a morte ali tão perto, era preciso agarrar-se à esperança de que voltariam.
A bordo do Dóri, cada homem tinha duas linhas, com um só anzol, e pescava de pé, com “Zagaias”, “Pingalins” e outras formas de “zagaiar”, normalmente com uma linha em cada mão, com os braços a puxarem e largarem as linhas, encostadas a dois pinos - pontas de cornos de vaca ou boi - colocados na borda do Dóri e seguros por uma pequena linha de Gagim.
Para isco usava-se o Clam , importado dos Estados Unidos, tripas de Cagarras, Lulas, Capelins ou outros peixes encontrados no estômago das primeiras capturas.
O isco preferido era a Lula, por isso tinham sempre a bordo uma linha para a pesca desse molusco, guarnecida de dia e de noite, chegando mesmo a acordar toda a gente aquando da passagem de um cardume. A sua importância era tal, que o primeiro a pescar uma Lula recebia o mesmo prémio que o primeiro a chegar a bordo com um Dóri cheio: uma garrafa de aguardente, fiel companheira nas horas de solidão, religiosamente guardada dentro do “Foquim”, junto com a merenda e o tabaco.
De início não havia outro tipo de pesca. Só mais tarde apareceu o “Troley”. Linhas de Gagim, com “Entralhos” para fixar os anzóis, que levavam no início um “Grampolim”, ferro de fixar a linha ao fundo e no final um balão, feito pelo próprio pescador, em lona e impregnado de Óleo de Linhaça fervido, no qual misturavam um pouco de tinta para dar a cor que cada um mais gostava.
E assim se passavam horas infindas e tantas vezes medonhas, até que o Dóri enchesse de peixe, enquanto que ao longe o Lugre “caturrava”, fazendo horas do pessoal regressar a bordo.
Após regressar ao navio com a captura, o peixe era atirado para dentro de umas caixas, as “Quetes” , com a ajuda de forquilhas, a que chamavam garfos. Dali passava para o "Troteiro", que o degolava e abria, com uma faca de dois gumes, o “Trote”. Passava depois para o “Quebra-cabeças”, que lhe retirava as vísceras e, com uma pancada na espinha, lhe separava a cabeça, empurrando-o para o Escalador. Em cada mesa havia um buraco para o qual se atirava o fígado - “Levas” na gíria dos pescadores - que depois de reunidos eram colocados em barricas, ficando a decompor-se, separando assim o óleo dos restantes líquidos, que sendo menos densos ficavam por baixo, abrindo uma torneira que existia no fundo das barricas. Cabia ao Escalador dar a forma ao bacalhau, usando uma faca de um só gume, atirando-o de seguida para dentro da “Selha” de lavagem. Esse trabalho decorria durante todo o dia, sob os rigores do clima, e do mar, que amiúde tudo inundava com uma vaga. Com o cair da noite e a recolha dos últimos Dóris, sob a luz das lanternas de petróleo, baldeava-se o convés, lançando ao mar os restos, a que os pescadores chamavam “Gueira”, que no entanto, ia deixando o cheiro entranhado no navio, que todos notavam, menos os pescadores.
Mas sob a coberta o trabalho continuava, depois de lavado, o bacalhau entrava para o porão para ser salgado, e talvez fosse esse o trabalho mais duro a bordo, com a escotilha quase sempre meia fechada, para proteger o bacalhau da chuva e dos golpes de mar, com pouca luz e o mau cheiro intenso, de gatas sobre o bacalhau que iam empilhando, os salgadores deitavam uma mão cheia de sal atrás da outra, sobre o peixe, que passava então a ser "Bacalhau Verde". A memória da dureza deste trabalho ficou marcada na expressão popular que algumas mães usavam quando queriam ameaçar os filhos: “se continuas assim, mando-te embarcar como salgador”.
O frio, o sal, as linhas, em suma toda a dureza do trabalho refletia-se sobretudo nas mãos. Inchavam, endureciam, enchiam-se de frieiras, que com o tempo rebentavam, transformando-se em chagas.
Nos Dóris o trabalho não permitia o uso de luvas, pelo que os pescadores usavam umas tiras de couro para proteger as palmas a que chamavam “Nepas”. Todas as tarefas eram feitas entre as 5 horas da manhã e a meia-noite, sem feriados ou fins-de-semana, e mesmo o tempo de vigia era tirado ao tempo de descanso.
Quando acabava o dia de trabalho, por volta da meia-noite, o Capitão estava no porão do navio a ver a salga, que era a parte que exigia mais assistência, para o peixe não se estragar. Quando chegava cá acima perguntava que horas eram, já que não era hábito usar relógio de pulso. Lá lhe diziam: “um quarto para a meia-noite!”. Ele fazia logo as contas e respondia: “Louvados às cinco horas da manhã!” E “Louvados” era o mesmo que levantados… o pessoal depois comia alguma coisa e deitava-se a dormir, completamente vestido. Não mudavam de roupa com muita frequência.
Os vigias, que rodavam de acordo com uma escala diária de serviço alertavam a tripulação no caso de se levantar uma tempestade de repente ou de vir um Iceberg em direção ao Lugre.
Mas o mar que lhes dava o pão, podia dar-lhes também a perdição. Não foram poucos os que por lá ficaram, engolidos pelas ondas, vivos ou mortos.
Quantos nele não encontraram sepultura? Ou porque desapareciam nas vagas, ou porque, mesmo morrendo a bordo, eram atirados borda fora. Era o Capitão que decidia se os levava a terra, ou se os sepultava no mar. E muitas vezes, era ali mesmo que os deixava…
Um dia, um dos companheiros de Álvaro Fernandes Reboca faleceu a bordo, com “uma doença nos pulmões”. O próprio contou a história, entrevistado por Marques Cabete, do programa “Culturando”, na Rádio Maiorca, em Setembro de 1994.
- O Capitão mandou embrulhar o corpo em vários lençóis, amarrados com pedaços de correntes. Até chumbo se atou à sua volta para fazer peso.
Junto á Amura de Estibordo, rezaram-se três Ave Marias e um Pai Nosso, encomendando-lhe a alma a Deus. A tripulação, angustiada, assistia assim ao desaparecimento de um companheiro, sem a família o poder ver. Corpo botado no Dóri, “Teques” presos nas “Alças” e vá de arriar.
- Comigo foi mais um camarada. Remámos para nos afastarmos do
Lugre. Às tantas, diz-me o outro: "é pá, ele já não vem mais cá acima. Vamos chapá-lo ao mar”. E assim se fez…. de seguida remámos para bordo e a faina continuou.
Outros funerais foram feitos a bordo, com o mesmo envolvimento de roupa, correntes e tudo que fizesse peso, mas deitados na “Amura” - borda do Lugre - e de seguida atirados ao mar.
E o pior de tudo é que em terra não se sabia de nada, enquanto não terminasse a viagem. Não haviam comunicações por rádio. As mensagens eram dadas por código, com bandeiras içadas no mastro da Vela Mezena.
Pelas dunas do areal da Cova até ao Cabedelo, corriam famílias inteiras, ao encontro do Lugre do seu homem, do filho, do pai ou avô, tio ou sobrinho e tantos amigos da terra. O alvoroço era geral, numa mistura de alegria, medo e angustia.
A ansiedade de mostrar o filho ao pai, feito na época do defeso e que entretanto tinha nascido.
Era também a esperança de ir à casa de penhores “tirar o fio de ouro do prego”, ou a gabardina, empenhados a meio do Inverno, para acudir às necessidades mais urgentes da família.
Acostumados a reconhecerem os códigos, de pronto se sabia se vinham de saúde, se traziam doentes, se havia gente presa por desobediência, ou desaparecidos.
Foi assim por muitos e dolorosos anos.
Nessa viagem, como em tantas outras, viu-se ao longe que a bandeira falava de morte, mesmo sem se saber ainda quem morrera. Por isso, o pranto era geral, entre os que em terra esperavam ansiosos: “houve morte a bordo. Ai que desgraça!
Manuel Alberto Afonso recorda a entrevista na Rádio Maiorca: “ o Ti Álvaro Reboca – que Deus o tenha - ficou rígido de rosto, voz embargada pela recordação, pela emoção. Um retrato vivo e infindável de amargura… sentimos um calafrio por ouvir, assim, daquele modo simples, uma das componentes de tragédia mais abruptas e violentas da Faina Maior. Infelizmente temos casos destes na minha terra. Famílias que cresceram com a desgraça, mas que nunca deixaram o mar”.
Francisco VieiraFontes: Manuel Alberto Afonso, “Álbum Figueirense”, “Ílhavo - Terra de Marinheiros”, “Caxinas – de Lugar a Freguesia”, “Aqui e Agora”, “Wikipédia”.
Preparem-se, pois certamente começaremos a ver mais vezes textos deste grandes escritor aqui no blog.
Espero que tenham gostado, e até à próxima!
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© 2012 por Tiago Neves. Todos os direitos reservados.